Botequim ordinário, onde se vendia o café a dez reis cada xícara.

17
Nov 12

HOJE APARECEU UM POMBO

 

Hoje apareceu um pombo morto no

quintal. Não foi o gato, que morreu

antes dele num sábado sem sol, a não

querer já a minha mão, a não querer

colo. Fiquei cansada: houve sempre

 

tantas mortes na minha vida - os

meus pais, tu, a menina pendurada no

meu seio, os meus irmãos - e, como

o pombo, também estas asas já  vão

reclamando voos noutros céus. Se eu

 

quisesse camélias brancas na minha

sepultura, como  as que levei à igreja

quando nos casámos, ou arrastar para

a escuridão da terra o vago ouro das

nossas alianças; se tudo o que juntei

 

(e foi tão pouco) pudesse ainda ficar

com os que me faltam, dava estes dedos

deformados ao tear das palavras e

escrevia um bilhete como as raparigas

 

que se envenenam por amor; e havia de

pousá-lo no peito depois de me deitar,

já lavada e vestida, para que ninguém

se desse ao trabalho, que eu conheço

essa dor. Mas partir é mesmo a minha

 

última vontade: tu já morreste, morreu o

gato há dias; encontrei hoje um pombo

morto no quintal e, quando o enterrar, não

 

haverá já nada que me prenda - vou-me

embora daqui tão só como cheguei, sem ter

deixado a ninguém o nome que me deram.

 

Selecção de Poemas - Tomás Salavisa 

 

 

publicado por Café de Lepes às 00:22

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