Sabe bem recordar o passado, quando esse tempo não nos deu muita pancada. Nada melhor do que apanhar um velho autocarro, agora já não dos Claras, mas da Rodoviária do Tejo. A tarde estava muito quente, a temperatura rondaria os 40 graus, não seria inferior dentro do veículo. Um pequeno autocarro, apesar da distância no tempo, pouco melhor do que os da antiga empresa de Torres Novas, levar-nos-ia até Abrantes. Poucos passageiros, a três euros e vinte cêntimos cada viagem, não daria para pagar o combustível consumido nos trinta quilómetros de percurso. Atravessámos esta Terra, hora de almoço, daí, talvez, não nos termos cruzado com ninguém. Rumámos em direcção ao Penhascoso, surpreendentemente lobrigámos algumas pessoas. Porém nem sequer parámos, não havia passageiros para entrar. O calor dificilmente se suportava. Não existia ar condicionado. Baforadas de ar quente entravam através da janela aberta no tejadilho. A estrada serpenteava por entre campos recobertos de mato, de tão seco que bastaria um fósforo para atear um imenso braseiro. Aqui e ali surgiam pinheiros a renascer das cinzas dos fogos de 2003. Como é possível, após tantos anos, o que foi uma imensa floresta de pinho e eucalipto, manter-se em tal estado de abandono. Pachorrentamente o nosso transporte atingiu Mouriscas, sem que antes, e parece ser habitual, o motorista não fizesse uma paragem junto à Herdade da Murteira, para encher algumas garrafas na fonte de abundante água, de boa qualidade talvez, a crer pela afluência de utilizadores. Em Mouriscas os viajantes aumentaram, com a entrada de dois casais, um de jovens, o outro de idosos, rumavam à cidade. Casas em ruína, muito do comércio de há trinta anos encerrado, poucas pessoas, enfim, o retrato das aldeias do interior. Com Mouriscas já para trás, passámos junto àquela casa de alterne, que há muitos anos existe em Casal das Mansas(?) quando poucos estabelecimentos do género havia por aí. Então o motorista aproveitou para contar a história de um fulano, já com idade para ter juízo, isto é, pai de filhos, funcionário com um cargo importante numa multinacional da região, que desgraçou a vida por gostar das "artistas" do tal bar, gastando o que tinha e o que não tinha, mais o que não tinha, com as mulheres por quem se ia apaixonando. Pagou os seus desvarios com mais de meia dúzia de anos na cadeia. Agora vive do rendimento mínimo, mas já se sente velho para se meter em novas aventuras, rematou o motorista. Cabe aqui aclarar que nestas viagens, em que os passageiros não atingem a meia dúzia, há sempre conversas entre motorista e viajantes, até porque a estrada de tantas curvas e contra-curvas, obriga a uma velocidade baixíssima, permitindo o diálogo entre passageiros e condutor. Mirámos o Tejo, as águas correndo pachorrentas em direcção à foz e espreitámos os carris da linha da Beira Baixa, bem junto ao rio. E, finalmente, encalorados e suados alcançámos as Alferraredes, a Velha e a Nova. Para não ser excepção, também Alferrarede mostra imensos sinais de decadência. Os prédios em adiantado estado de degradação abundam. O cinema acabou, embora o edifício se mantenha com evidentes mostras de velhice. Muito comércio encerrou as portas e das bombas da BP só existe uma casa ao abandono. A UFA transferiu-se para o Barreiro há muitos anos e o Simão dos azeites fechou, também já não existe o Matos Tavares, um importante armazém de ferro e ferragens, até os Dragões, clube que já deu cartas no futebol distrital e nacional está agora no mais baixo escalão do distrito. Todavia há as grandes urbanizações, com a maioria dos andares vazios, sinal dos tempos, mas que nada têm a ver com esta viagem. Deixemos pois Alferrarede e prossigamos no velho autocarro da Rodoviária do Tejo em direcção à sede do concelho, nosso destino. Chegados a este ponto a história deixa de ter sentido, pois são tantas e tão profundas as transformações operadas na fresca Abrantes, como a ela se referiu Camões, que ao viajante se torna impossível reconhecer a cidade de há trinta anos. Termine-se, pois, aqui, a narração.